Messejana é uma região distinta, desde o sol que abriga seu clima até suas construções que remontam a um tempo mais antigo que a própria temporalidade da cidade em si. Em seus cartórios, feiras, camelôs, panfletistas, motoqueiros, escolas e vida urbana se abrigam e se camuflam aldeias e povoados que vão se atualizando ao longo do tempo.
Nesse território, ampliamos nossa lente um pouco mais e encontramos a região da Lagoa Redonda, localizada em Fortaleza/Ceará, composta por várias comunidades. O Conjunto Curió é uma delas — mais um recorte da cidade. O seu processo de ocupação é resultado de intervenções no espaço urbano, tornando-se o local escolhido e/ou predestinado para homens e mulheres construírem suas trajetórias de vida.
São muitas as práticas que fazem a identidade de um território: são memórias, vidas que em sua pulsação inventam um lugar, dando aspectos outros à paisagem, a partir da necessidade que o ser humano tem de habitar para proteger-se das intempéries naturais.
No Curió, assim como em outros lugares, pode-se perceber a divisão do espaço em pequenos territórios, resultado da luta popular por moradia — e, algumas vezes, de políticas habitacionais. Dessa divisão, surgem os “microterritórios” do Curió, como Itambé, Casas da Caixa, Mutirão, Bárbara de Alencar…
Essa divisão espacial está em constante transformação: a todo instante novos sujeitos aparecem com a necessidade de ter o seu teto, locais planejados ou não, mas que cumprem um papel fundamental na vida das pessoas, que é o do direito à moradia.
A área que hoje conhecemos como Bairro Curió já sediou sítios e fazendas destinados à atividade da agricultura e da pecuária. O Curió é feito por sujeitos, na sua maior parte, vindos de regiões interioranas, que interferem no processo de urbanização.
As palmeiras revelam uma vegetação seca, na terra de barro vermelho, que tinge pés, de dedos a calcanhares. Mas ao caminhar mais um pouco, o solo muda e uma areia fina e alva afunda nossos pés e nos faz pensar que estamos muito próximos do mar — o que é verdade, mas nos deparamos é com uma lagoa, imensa: a Precabura. São coqueirais e tantos cajueiros e mangueiras ao longo de praticamente qualquer direção que se tome por ali.
Mais adiante, podemos notar que existe algo que está presente constantemente e nos cerca: um braço verde que abraça o bairro e filtra o solo, o ar, o som urbano que parte dos asfaltos indicando direções. É uma floresta, mata de tabuleiro, que abriga vegetações do Cerrado, da Caatinga e da Mata Atlântica, expressões naturais de vida dissemelhantes, espécies distintas de fauna e flora.
O lado leste, a partir da Rua Nelson Coelho onde estão situadas as “Casas da Caixa”, antes de acolher casas era um imenso coqueiral que se estendia até a lagoa, ambiente que se conecta ao Itambé — que, por sua vez, interliga o aspecto litorâneo da lagoa com a zona da mata da Floresta do Curió. Consequentemente, o Itambé é a intersecção entre os lados leste e oeste: “Mutirão” e “Casas da Caixa” convergindo desses dois aspectos da natureza histórica e geográfica do Curió.
Antes disso, porém, na segunda metade do século XX, o bairro começa a receber moradias que ocupavam os sítios por meio da atividade da agricultura, uma terra fértil que possibilitava boas colheitas.
Com isso, o lugar que era apenas para trabalho, começa a ser escolhido como local para moradia. É a partir desse processo que é formado o primeiro “microterritório” do Curió, o Itambé: as casas iniciais eram de taipas, segundo a memória da vizinhança que atuou na transformação desse espaço, constituída de trabalhadores que encontraram a possibilidade de morar próximo ao local do serviço, próximo aos familiares, na capital do Estado — entre tantos outros fatores que resultam no processo da migração.
A ocupação do Curió continua — e por volta de 1980, a Caixa Econômica Federal inicia um projeto de construções de casas em modelo de “embriões”: as moradias eram para ser vendidas a baixo custo, para compradores que tinham como comprovar renda que possibilitasse os pagamentos das parcelas.
Foi dado início à formação de mais um território — são as famigeradas “Casas da Caixa”. Ao chegar ao bairro, os moradores e moradoras se deparam com uma série de problemáticas, como a falta de escola de nível médio, áreas de lazer, transporte público — já que moradia não é apenas quatro paredes e um telhado: as necessidades vão muito além da estrutura residencial. As precariedades do bairro resultaram na construção da Associação de Moradores do Itambé e Residencial Curió (AMIRC), que se organizou socialmente para reivindicar por melhores condições de vida.
Em 1996, o lugar é palco das construções de casas por meio da atuação de associações de moradores e moradoras que já eram organizadas em outros bairros da cidade. O Governo Federal arcava com os materiais, o Estado garantia o terreno — e a população, a mão de obra. Assim, esse microterritório ficou conhecido como “Mutirão”. Diferente do Itambé e do Residencial Curió, o “Mutirão” contou com diversas associações que já vinham organizadas de outros bairros da Capital. Pela linguagem, mutirão é um substantivo que denota ação, mobilização de ordem coletiva visando uma ajuda mútua, mas em nosso mapa o “Mutirão” é um lugar que, assim como a palavra, também suscita mobilização coletiva e ajuda mútua.
Quando as obras começaram, os mutirantes chegavam em caminhões. Chegavam ao destino às 7h da manhã, em caminhões que saíam de vários pontos da cidade de Fortaleza, abarrotados de pás, enxadas e gente. Eram muitas pessoas chegando a um imenso terreno para trabalhar, cavar a terra, fazer alicerce, subir paredes. Os mutirantes eram mulheres e homens que se reuniam em mutirão para uma grande construção: a de suas próprias casas. As futuras donas e donos de casa foram as/os que deram corpo a essa arquitetura. Carregavam os tijolos, preparavam o cimento, sentavam suas casas.
Assim o Curió começou a ser desenhado em sua essência de comunidade. Os que ali se encontravam para o fazer de suas casas já eram vizinhos/as e exerciam essa vizinhança, já habitavam esse espaço e o fabricavam — fabricando, concomitantemente, a própria relação com os outros moradores e moradoras, fosse no exercício da construção, fosse nos populosos almoços comunitários, ou até mesmo na produção desses almoços.
Enquanto isso, no lado leste, o outro lado da rua principal daquela esquecida região da Lagoa Redonda — nas famigeradas “Casas da Caixa” —, moradoras e moradores do Residencial Curió assistiam a tudo isso com a mão no queixo, temendo que tipo de vizinhos seriam aqueles que chegavam em caminhões. Eram os anos corridos da década de 1990 no Estado do Ceará — e as pessoas eram muito pobres. Nesse cenário espaço-temporal, o direito ao espaço era algo inalcançável e isso custava a ser compreendido, fazendo com que muitas daquelas famílias que haviam trabalhado para subir suas casas, as vendessem logo que possível — e voltassem ao antigo logradouro.
A palavra Curió, que está presente em tantos aspectos nesse território, passa a inundar toda uma extensão, corroborando um raio geográfico a se reconhecer enquanto região: Curió.
O Curió, suas sub-regiões, moradoras e moradores, é como a floresta: tem suas origens em lugares distintos e naturezas diversas. Em seu arcabouço, vários ecossistemas que se interligam de formas variadas pelo jeito de morar e ocupar: são trajetórias múltiplas que se interligam por meio da luta social, da organização comunitária, redesenhando um espaço por meio da vida dos seus e das suas habitantes.
Texto escrito a partir de versão original de Marcus Vinicius Bezerra e Patrícia Lopes publicada no livro “Onze”