Trajetória de vida de uma mãe sobrevivente
“Eu fui a primeira pessoa a chegar lá. Eu fui a primeira pessoa a presenciar e a tocar em cada um deles. Até hoje eu não entendo porque é que eu não consegui chegar perto do meu filho, enquanto ele me chamava (…). Porque a minha intenção era agir (…), chamar a polícia, chamar o Samu. Eu queria salvar aquelas vidas, então, se eu chegasse perto do meu filho, eu não ia conseguir fazer nada. E ele me chamava e eu não ia.”
Esse relato da mãe de um sobrevivente foi marcado por pausas cheias de emoção, tanto dela como nossas, que a ouvíamos. Quem é essa mulher que tentou agir, diante da agonia de um momento que dividiu sua vida? Que força a atravessa e a impulsiona? Qual é sua história?
D. Silvia, quando criança, morava em uma travessa no bairro Pio XII, em Fortaleza, com os pais e os irmãos. Na frente da casa tinha muito espaço, no qual as crianças da vizinhança se encontravam para brincar. Ela sorria em muitos momentos, enquanto narrava cenas da sua infância.
O amor em família fez-se presente em relatos de gestos, de atitudes dos pais com os filhos e entre os irmãos, quando ela partilhou conosco alguns episódios:
- Os “capitães” feitos de feijão: às vezes, o que a gente tinha para comer era arroz com feijão, mas a gente levava aquilo na brincadeira porque a minha mãe e o meu pai faziam lá aqueles molequinhos, os capitão (…). Era tão bom aqueles capitão, que não tinha comida melhor no mundo do que aqueles capitão!;
- A boneca presa no beco: D. Silvia nos narrou que na infância não tinha brinquedos porque a gente era uma família pobre, mas ela relatou um episódio em que sua mãe comprou bonecas para as três filhas — e, como ela era a filha menor, ficou com a boneca pequena, daquelas mais ruinzinha que tinha e a mais feiosa.
A partir daí, enquanto descrevia uma infância de muito afeto e proteção, marcada por brincadeiras e brinquedos improvisados, ela começou a nos falar sobre a descoberta da sua fé. Fez sua primeira Eucaristia aos 7 anos, com direito a uma celebração pela família com um bolo e aluá em casa, mas não fez a Crisma. Conheceu a Igreja Evangélica aos 14 anos e se empolgou.
Importa considerar que as vivências com sua família foram marcantes para que ela realizasse vários questionamentos que afetaram suas escolhas de vida, tal qual a busca por sustento para sua fé, que ela não podia abandonar até alcançar. Mais adiante, em outros trechos da sua narrativa, percebemos o quanto esse sustento foi fundamental para suas experiências de sobrevivência, dentre as quais a chegada da maternidade aos 18 anos. A vergonha por estar grávida a levou a sair da escola, na qual cursava o 3º Ano do Ensino Médio, e a não mais retomar os estudos.
Sofrimentos e fragilidades, forças e superações
Sim, D. Silvia tem passado por outras situações em que precisou superar fragilidades para seguir vivendo:
- O imenso esforço que tem sido necessário para ultrapassar, pouco a pouco, pelo menos algumas das profundas consequências de vivenciar tantos momentos trágicos resultantes da Chacina do Curió, quais sejam: a perda de um sobrinho, os traumas psicológicos de uma filha e os traumas físicos e psicológicos de um filho, atingido por doze balas, segundo seu relato; as diversas vezes que precisou reagir aos constrangimentos sofridos durante a permanência de seu filho em hospitais, em estado gravíssimo, o que tornava ainda mais doloroso esse processo para a família;
- No ano anterior a tamanho abalo, D. Silvia havia perdido duas jovens sobrinhas, com as quais mantinha vínculos afetivos fortes, ambas por mortes em circunstâncias trágicas;
- Tudo o que implica vencer um câncer, chegando a ser desenganada por profissional que deveria dispensar-lhe cuidados, ainda que depois tenha sido apoiada por outro, que não concordava com a colega. O tratamento a que se submeteu deixou sequelas que lhe impõem limites e fragilizam sua saúde física até hoje, mas ela segue adiante — impulsionada, acreditamos, pela força que existe dentro e fora dela.
Todas essas experiências de dor causaram marcas profundas nessa mulher que, apesar de tudo, se sente impulsionada também a seguir na luta por justiça, pela responsabilização dos que promoveram a Chacina, pelas mortes de 11 pessoas, das quais 9 eram extremamente jovens.
Importa reconhecermos que a narrativa apresentada por ela demarca uma relação com o tempo muito específica, em que a violência da Chacina parece ser sentida no tempo presente. Sentimos que sua fala denuncia algo muito recente, o que nos diz da vasta dor que ainda a atravessa. Entendemos que esse tempo do agora é também o das diversas violências que seguem acometendo jovens e famílias que vivem em comunidades da periferia.
Desejos e sonhos
O primeiro desejo dessa mulher sobrevivente é que seja feita Justiça pelo que já aconteceu — e pelo que ainda pode ocorrer, ou seja, que os culpados sejam condenados, reiterando que a espera por essa Justiça, para ela, não é só pelos que se foram, não é só pelos parentes, mas para que não se repita: para que não ocorra uma nova Chacina.
Para seus filhos, ela espera que cada um se estabilize e siga o caminho que escolheu: a filha com sua própria família, com seu marido e sua filha; e que o filho possa recuperar a alegria e voltar a ser sonhador como era, pois D. Silvia considera que seu filho atualmente é uma sombra do que ele era. Que ele volte a ter sonhos, a buscar um caminho do seu jeito — e que lhe dê um neto homem, como D. Silvia acha que vai acontecer.
Ela também sonha sobre si própria e sobre sua família, incluindo-a em um cenário maior: o que espero para minha família, para mim, eu também espero para o geral, para todos — todos como um coletivo, como um grupo, como um movimento em favor da vida e dignidade para todos. Há vastidão de solidariedade e generosidade no olhar e na narrativa dessa mulher, que trava sua luta como extensão de outras tantas.
Resumo do texto que consta no livro Onze, organizado pelo Movimento de Mães e Familiares do Curió