Provas técnicas e científicas fundamentam denúncia oferecida pelo MPCE contra policiais envolvidos
Provas técnicas e científicas levaram o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) a denunciar, em 14 de junho de 2016, um total de 45 pessoas por suposta participação no episódio que ficou conhecido como a Chacina do Curió, ocorrida na noite do dia 11 e madrugada de 12 de novembro de 2015, na grande Messejana, em Fortaleza. O documento foi elaborado por promotores de Justiça que, à época, compuseram uma força-tarefa criada pela Procuradoria Geral de Justiça para acompanhar as investigações. Detalhes revelam, através do relato de 9 episódios, como se deu o envolvimento dos denunciados nos fatos que resultaram na morte de 11 pessoas. A Justiça aceitou a denúncia contra 44 policiais militares, que na época foram presos preventivamente. Destes, 34 foram pronunciados pelo Poder Judiciário para ir a Júri Popular.
A denúncia do MPCE é assinada por 12 promotores de Justiça que averiguaram meticulosamente mais de 3.300 laudas, distribuídas em 12 volumes e 3 anexos de processos. Foram ouvidas 240 pessoas e analisadas imagens de câmeras de segurança de comércios e condomínios residenciais dos bairros Curió e Lagoa Redonda, na capital cearense. Mensagens trocadas via WhatsApp e por rádios comunicadores da Polícia também fizeram parte da apuração para a elaboração da peça. Os promotores analisaram ainda dados de fotossensores do entorno onde aconteceram os crimes e de GPS das viaturas policiais, além de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça e informações sobre a localização de aparelhos celulares dos suspeitos.
No entendimento do Ministério Público, os crimes referem-se a 11 homicídios duplamente qualificados consumados (art. 121, § 2º, incisos I e IV do Código Penal), por motivo torpe e com uso de recurso que dificultou ou impossibilitou as defesas das vítimas; três homicídios tentados duplamente qualificados (art. 121, § 2º, incisos I e IV, c/c art. 14, inciso II, ambos do Código Penal), também por motivo torpe e com recurso que impossibilitou ou dificultou as defesas das vítimas; três crimes de tortura física (art. 1º, I ‘a’, II, §§ 2º, 3º e 4º, I, da Lei n. 9.455/97); e um crime de tortura psicológica (art.1º, I, letra ‘a’, §§2º, 3 e 4º, I, da Lei n. 9.455/97).
Na chacina, foram vítimas de homicídio Alef Sousa Cavalcante, 17 anos; Antônio Alisson Inácio Cardoso, 17; Francisco Enildo Pereira Chagas, 41; Jandson Alexandre de Sousa, 19; Jardel Lima dos Santos, 17; José Gilvan Pinto Barbosa, 41; Marcelo da Silva Mendes, 17; Patrício João Pinho Leite, 16; Pedro Alcântara Barroso, 18; Renayson Girão da Silva, 17; e Valmir Ferreira da Conceição, 37.
Ante a gravidade dos fatos, o MP Estadual nomeou todos os promotores de Justiça do Júri de Fortaleza para, de imediato, atuarem no acompanhamento das investigações. Também compuseram a força-tarefa integrantes do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco). A definição sobre o acompanhamento foi do então procurador-geral de Justiça, Ricardo Machado, em novembro de 2015.
O material mostrou de forma clara que os atos violentos praticados naquela madrugada tinham como autores integrantes da Segurança Pública do Estado, que o fizeram agindo ou se omitindo.
Márcia Lopes – promotora de justiça
Márcia Lopes, uma das promotoras que acompanhou o caso e assinou a denúncia com outros 11 membros do MPCE, atuava perante a 4ª Vara do Júri de Fortaleza. “Sempre havia pelo menos um promotor ou promotora do Júri acompanhando os depoimentos que prontamente passaram a ser colhidos na Delegacia de Assuntos Internos- DAI (vinculada à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública), seja de vítimas sobreviventes, familiares, testemunhas, ou mesmo de suspeitos. Ao acompanhar de perto os depoimentos, pudemos, logo no início das investigações, não apenas entender a magnitude dos fatos praticados naquela madrugada, mas também constatar a lisura e empenho das equipes da DAI em dar à sociedade cearense uma resposta imparcial, técnica e o mais célere possível ante a complexidade do caso”, destaca a promotora de Justiça.
Encerradas as investigações e concluído o inquérito, este foi encaminhado ao Ministério Público, carregado de provas de diversas naturezas. “O material mostrou de forma clara que os atos violentos praticados naquela madrugada tinham como autores integrantes da Segurança Pública do Estado, que o fizeram agindo ou se omitindo. Tal como na fase da investigação, os promotores do Júri de Fortaleza, dentro de suas disponibilidades e sem prejudicar o andamento das atividades ordinárias, se dividiram para analisar o extenso inquérito, elaborar e revisar o texto da denúncia”, explica a promotora.
O promotor de Justiça Franke José Soares Rosa, também um dos que apuraram os fatos e elaboraram a denúncia, lembra que “a principal preocupação era zelar por uma investigação séria, com respeito a todos os procedimentos legais e que chegasse aos responsáveis com base em elementos concretos e idôneos. Além disso, diante das informações quanto ao envolvimento de diversos policiais nos homicídios, a presença dos promotores buscou fazer com que as vítimas sobreviventes e testemunhas se sentissem seguras para dizerem o que efetivamente havia ocorrido”.
Vingança
Segundo a denúncia, os crimes foram motivados por vingança, em uma ação articulada por policiais militares que estavam de serviço e também de folga. Horas antes da chacina, o soldado PM Valtermberg Chaves Serpa fora morto após reagir a um roubo contra a esposa dele, caracterizando latrocínio. Esse crime aconteceu em um campo de futebol no bairro Lagoa Redonda, na Grande Messejana, também em Fortaleza. Na ocasião, o policial estava de folga, mas armado. A morte do policial repercutiu rapidamente nas redes sociais e em aplicativos de mensagens de policiais militares, ganhando a adesão de dezenas de colegas de farda para o ato de vingança.
Muitos estavam de folga naquele 11 de novembro, uma quarta-feira. “Imbuídos desse firme propósito, projetaram (…) uma ação impactante, com divisão de tarefas, que começou pela procura de alvos preferenciais, de regra, pessoas com envolvimento em práticas delitivas ou sobre as quais recaiam suspeitas de ações delituosas, ou, ainda, desafetos pessoais de alguns policiais que estavam participando da mencionada ação. (…) A preocupação maior era uma retaliação, a qualquer custo, pouco importando se as vítimas tinham, ou não, qualquer relação com este ou com qualquer evento criminoso. E, ao final, foi exatamente isso que aconteceu”, descreve a denúncia.
De acordo com a manifestação do Ministério Público Estadual, à medida que o tempo passava e que diminuía a quantidade de pessoas nas ruas, o plano aproximava-se da efetivação. Contudo, um fato traduziu o típico “justiçamento” da ação criminosa: os executores escolheram as vítimas aleatoriamente, resultando na morte e ofensa à integridade física e mental de pessoas inocentes e que não tinham qualquer envolvimento com a morte do policial Serpa. Além disso, o órgão ministerial relata, por meio da denúncia, que a confiança na impunidade foi um fator importante entre os denunciados. Isso porque os envolvidos tomaram cautelas para não serem reconhecidos, tentaram encobrir vestígios dos crimes e sabiam que as vítimas não tinham a quem recorrer, tendo em vista que se tratava de uma ação coordenada por agentes da lei, especificamente da segurança pública.
“Enquanto diversas vítimas eram covardemente assassinadas e a população, desesperada, ligava insistentemente para a CIOPS (Centro Integrado de Operações de Segurança Pública), vários dos policiais que estavam nas viaturas próximas e tinham pleno conhecimento do que estava acontecendo, ao invés de saírem em socorro delas – como seria de se esperar e de seu dever -, aderiram e colaboraram na prática dos referidos crimes”, explicita o documento.
Imagens, depoimentos e informações de ordem técnica indicam outro fato grave: viaturas da Polícia Militar que estavam próximo às ocorrências só foram aos locais horas depois dos crimes e de serem demandadas. Mais: alguns veículos da corporação se deslocaram pelas imediações, inclusive ao lado dos corpos, mas não pararam, mesmo diante dos apelos da população, que pedia socorro. O desdém por parte dos policiais foi tamanho, que ambulâncias do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) que se encontravam em locais distantes do bairro Curió chegaram aos locais das ocorrências antes das viaturas. Entretanto, ante a violência dos fatos e desconhecendo o que estava acontecendo, os socorristas não se sentiram seguros para prestar os primeiros atendimentos sem apoio da Polícia Militar.
Diante desse cenário, em desespero, moradores da região, familiares, amigos e conhecidos das vítimas providenciaram, como podiam, o atendimento inicial, levando feridos para hospitais em carros particulares, inclusive em carroceria de veículos de carga. Conforme detalha a denúncia, houve viaturas que dificultaram esse processo, parando um veículo que levava vítimas para um hospital e mesmo atentando contra a vida de uma das pessoas que ajudava no socorro às vítimas. Na ocasião, uma das pessoas que tentava ajudar foi atingida por oito disparos de arma de fogo.
Provas
A materialidade dos delitos citados na denúncia do MPCE se ampara legalmente nos autos dos exames de corpo de delito, nos autos cadavéricos e nos laudos periciais. São, portanto, provas idôneas, concretas e objetivas quanto ao envolvimento dos denunciados. A forma como atuaram indica a “utilização de instrumentos e métodos de que dispunham, inclusive, com a utilização de balaclavas”.
A denúncia revela ainda que, por se tratar de policiais militares, houve dificuldade na identificação de várias outras pessoas que, além dos agentes públicos, de algum modo contribuíram para a prática dos delitos. De toda forma, a peça do órgão ministerial apresenta um conjunto de informações, inclusive de ordem técnica, que demonstra que os denunciados atuaram mediante “unidade de desígnios, em típica situação de concurso de agentes e com divisão de tarefas para viabilizar a maior abrangência de atuação”. No entendimento do Ministério Público Estadual, essa ação coordenada, abrangente e organizada, por si só, já é suficiente para a responsabilização penal dos denunciados.
De acordo com a investigação realizada pela Delegacia de Assuntos Internos (DAI), os militares se organizaram por meio de comunicações telefônicas, inclusive utilizaram aplicativos de mensagens de celulares. A partir dos sistemas de rastreamento de viaturas da Secretária de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), identificou-se a participação de veículos caracterizados. Já o Sistema de Monitoramento do Trânsito revelou a participação de veículos particulares com placas adulteradas, que foram conduzidos por policiais de folga e homens encapuzados.